quinta-feira, 5 de março de 2009

2000 - Parte 2

02/01/2000

“Sabia que aquela maldita goteira ia acabar nisso. Síndico infeliz! “Não podemos fazer nenhum reparo sem a autorização do proprietário”. Minha cabeça dói. Muito. Não sei se estou na anestesia ou se é efeito do porre que tomei ontem. Nem sei como vim parar aqui, nem como esse diário inútil veio junto... Ninguém aqui me diz nada! Eu vou levantar daqui e mostrar pra aquele médico quem manda!”

Tentava se levantar. Dessa vez, seus membros não lutavam mais contra ele. Já estava derrotado e não sabia.

- Médico! Enfermeira! Alguém! Socorro! Socorro!

Anos se passaram desde a última vez que tivera medo. Não medo comum, mas medo de verdade. Medo de mudança. Medo com cheiro de realidade.

- O que foi? O que foi?

“Simplória. Minha mãe é quem costumava usar essa palavra. Cresci ouvindo sem saber literalmente seu significado. Se existe um significado literal para isso, era aquela mulher.”

            E de fato era. Tinha olhos castanhos, cabelos semi-cacheados na altura do ombro, sardas - nem muitas, nem poucas – pele branca, mas amorenada pelo sol, mãos grossas e mal-cuidadas. Detalhes que ganharam profundidade na superficialidade de uma cama de hospital.

- Minha perna! Meu corpo! Eu não sinto nada! Nada!

- Se acalme. Tenho certeza que são só os sedativos. Vou chamar o doutor. – Disse, ao deixar o quarto, na tranqüilidade de inúmeros casos iguais. Na tranqüilidade que só a mentira poderia trazer.

Na sua cabeça, os momentos a partir dali passaram como num filme. Não era ele. Sentia-se sentado numa cadeira de honra, assistindo um drama que nem os maiores prêmios seriam capazes de congratular. E mesmo assim, o filme era mudo. Não guardara nenhuma vogal, consoante, sílaba ou verbete. Já era meio-dia e não sentia fome, não sentia sede, não sentia. Congelado, olhava para o horizonte branco do quarto de hospital.

Uma criança chorava no quarto ao lado. Na recepção à frente, um casal se abraçava, também chorando. Estava só. Só com uma ficha, onde só conseguia ler três grandes palavras que rabiscara ali e depois em seu diário com as mãos trêmulas e os dedos rígidos como a pedra onde deitava sua cabeça. Rabisco feito no fim, no meio, ou ainda no início do dia. Não sabia. Não sabia.

“Abigail Tales Melo”.

Não. Não estava paraplégico. Não teria de amputar a perna. Preferiria se fosse assim. Na verdade, o gesso só duraria por 30 dias, ou o tempo que a sua paciência permitisse. O médico falara algo sobre cirurgia corretiva. Nada importante. Mesmo que morresse naquela tarde – Não seria nada importante.

“Nada.

Importante.

Abigail. Abigail. Abigail”

            A cada vogal, consoante, cada sílaba escrita, cada traço feito a lápis no surrado diário; Cada gota de tinta gasta no papel sugava-lhe uma gota de sangue. O sangue pago por ter de escrever aquele nome mais uma vez.

Continua.

Um comentário:

  1. hahaha!Ficou bem claro o humor influenciado por Machado de Assis. Tudo indica que ele ficou paraplégico. O drama que o personagem faz leva a deduzir isso. Lembra do conto da Cigana(não tenho certeza do nome)do Machado?

    Não gostei muito da mudança do tom narrativo, quando passa de diário para narrção em terceira pessoa. Acho você deveria manter o mesmo tom do começo ao fim.O que você acha Saint John?


    Willian Paulino

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