terça-feira, 7 de abril de 2009

2000 - Parte 3

03/01/2000

            “Dormi no hospital. Minha perna dói muito. Já consigo me mexer. As coisas voltaram a ter cor. Aquela mulher, a enfermeira, insistiu em ser minha amiga. Só não sei quem foi que disse pra ela que ela poderia ser. Estou meio que fugindo dela. Fugindo...”

            Num ato de fúria, não descontrolada, mas pensada, repensada, analisada e executada, ele rasga as folhas anteriores do diário pela metade - Simbólico ato impraticável de rasgar as mazelas do passado.

            “Acompanhante? Responsável? Quem eles pensam que eu sou? uma criança? Eu não... Lembro da última vez que a vi. Ou lembro. Não quero lembrar.”

            Sozinho há anos, desde que abandonara São Paulo, ele precisava de alguém que o acompanhasse para casa. Sabia, por sua obsessão incontrolável de vigiar os passos dela – Talvez, apenas para evitá-la – que também estava em Brasília. Talvez o ser humano mais próximo fosse Vinícius, o simpatissíssimo vizinho que o abandonara no hospital e partira para suas férias em Salvador. Olhos no relógio. Dedos sobre a mesinha. Olhos na Bíblia sobre a mesa.

“Abigail. Rainha de Davi, ela dizia. Ela.”

 Ouvidos no relógio. Dez horas. Hora do mergulho. Mergulho no abandono de si e para si. Contra si.

            - Senhor. – Disse a enfermeira, tocando-lhe o ombro num gesto de intimidade que lhe causara repulsa. – Err... Seu acompanhante já está aí. O senhor quer ajuda para se vestir?

            Disse que não com a cabeça. Com os dedos fez sinal para que saísse. Ao olhar para a própria mão morena, rígida e com pequenas manchas que teimava negar que fossem manchas senis, percebera mais um detalhe: Nunca usara uma aliança.

            Devidamente vestido, com a mesma camisa social cheirando a whisky, olhou por quatro segundos no relógio. Viu-se, sendo verdade ou não, atravessando todo o hospital no mesmo intervalo de tempo. Sem análises, sem pensamentos, sem medos, sem demora. Nunca sentira falta do sol. Nem sentia agora. Sentia falta da sombra, do chão, do espaço, e do frio. Sombra, chão, espaço e frio que não eram divididos. Eram seus. Pés na calçada. Luz. Branco. Amarelo, laranja e finalmente, rua. Coçando os olhos, procurava, com movimentos rápidos da cabeça, o seu acompanhante. Quando se acostumara com a idéia de reencontrar Abigail - seu passado, seu medo, sua divisão indesejada - a divisão havia se personificado na sua frente, em ossos, sangue, músculo, carne e cabelos. Ossos seus, ossos dela. Sangue seu, sangue dela. Carne sua, carne dela. Músculos seus. Cabelos dela.

“Um soco. Um soco! Quem é o idiota que dá um soco num homem com a perna quebrada (Quebrada não. Lascada! Cirurgia! Vou ter que fazer outro cirurgia!)? Eu sou vinte anos mais velho que aquele pivete! Bati a cabeça no chão. Já nem lembro mais como é NÃO sentir dor de cabeça. O moleque... O moleque tem a minha força.”

            - Davi.

            - Papai.

            Um soco. Ascendente, rápido, preciso. Punho esquerdo. Eco. Som seco. O golpe espalhou-se por todo o hospital. A enfermeira simplória, que não havia entrado ainda, virou-se e gritou. Guardas. Cabeça batendo no chão. O som foi da queda ou do soco? Ele se levanta com a ajuda de um senhor idoso, com a barba por fazer, que estava sentado num banco fixado a parede do hospital. O rapaz é imobilizado sem reação. Tinha os cabelos dela. Cacheados e castanhos. Alguns diziam que era vermelho. Tinha o soco do pai, que já estava levantado, olhando para os seus olhos, cogitando a idéia da dor de cabeça crônica.

            - Deixem. Ele é meu filho. – Mão na cabeça. Procurava instintivamente por sangue.

            - 30 dias. 30 dias e eu vou embora. – O rapaz vestia preto. Suas olheiras não eram naturais. Era elegante por natureza, mas seus gestos tinham som de cansaço.

            - E... Abigail? – Andavam juntos, lado a lado, deixando os guardas que imobilizaram o rapaz, a enfermeira que gritou e o senhor idoso que ajudou perplexos, parados na entrada no hospital.

            - Se você tivesse decidido tomar um porre um dia antes, teria tempo para ir ao enterro. Acidente de carro na madrugada de réveillon. Estava indo passar as férias em São Paulo. – Cada fração de saliva desperdiçada no relato frio, quase jornalístico, tocava e corroía a face do pai como ácido. Não transparecia. Agarrou-se ao diário, e passivamente, foi colocado dentro do carro preto cheirando a novo. Pediu uma caneta emprestada. Ou pegou a que já estava no bolso da camisa? Escreveu. Escreveu sobre o passado como se não houvesse hoje. Fugiu do hoje como se não houvesse amanhã.