sábado, 7 de março de 2009

Eu acho que...

A erudição é o ópio dos pretensiosos.

quinta-feira, 5 de março de 2009

2000 - Parte 2

02/01/2000

“Sabia que aquela maldita goteira ia acabar nisso. Síndico infeliz! “Não podemos fazer nenhum reparo sem a autorização do proprietário”. Minha cabeça dói. Muito. Não sei se estou na anestesia ou se é efeito do porre que tomei ontem. Nem sei como vim parar aqui, nem como esse diário inútil veio junto... Ninguém aqui me diz nada! Eu vou levantar daqui e mostrar pra aquele médico quem manda!”

Tentava se levantar. Dessa vez, seus membros não lutavam mais contra ele. Já estava derrotado e não sabia.

- Médico! Enfermeira! Alguém! Socorro! Socorro!

Anos se passaram desde a última vez que tivera medo. Não medo comum, mas medo de verdade. Medo de mudança. Medo com cheiro de realidade.

- O que foi? O que foi?

“Simplória. Minha mãe é quem costumava usar essa palavra. Cresci ouvindo sem saber literalmente seu significado. Se existe um significado literal para isso, era aquela mulher.”

            E de fato era. Tinha olhos castanhos, cabelos semi-cacheados na altura do ombro, sardas - nem muitas, nem poucas – pele branca, mas amorenada pelo sol, mãos grossas e mal-cuidadas. Detalhes que ganharam profundidade na superficialidade de uma cama de hospital.

- Minha perna! Meu corpo! Eu não sinto nada! Nada!

- Se acalme. Tenho certeza que são só os sedativos. Vou chamar o doutor. – Disse, ao deixar o quarto, na tranqüilidade de inúmeros casos iguais. Na tranqüilidade que só a mentira poderia trazer.

Na sua cabeça, os momentos a partir dali passaram como num filme. Não era ele. Sentia-se sentado numa cadeira de honra, assistindo um drama que nem os maiores prêmios seriam capazes de congratular. E mesmo assim, o filme era mudo. Não guardara nenhuma vogal, consoante, sílaba ou verbete. Já era meio-dia e não sentia fome, não sentia sede, não sentia. Congelado, olhava para o horizonte branco do quarto de hospital.

Uma criança chorava no quarto ao lado. Na recepção à frente, um casal se abraçava, também chorando. Estava só. Só com uma ficha, onde só conseguia ler três grandes palavras que rabiscara ali e depois em seu diário com as mãos trêmulas e os dedos rígidos como a pedra onde deitava sua cabeça. Rabisco feito no fim, no meio, ou ainda no início do dia. Não sabia. Não sabia.

“Abigail Tales Melo”.

Não. Não estava paraplégico. Não teria de amputar a perna. Preferiria se fosse assim. Na verdade, o gesso só duraria por 30 dias, ou o tempo que a sua paciência permitisse. O médico falara algo sobre cirurgia corretiva. Nada importante. Mesmo que morresse naquela tarde – Não seria nada importante.

“Nada.

Importante.

Abigail. Abigail. Abigail”

            A cada vogal, consoante, cada sílaba escrita, cada traço feito a lápis no surrado diário; Cada gota de tinta gasta no papel sugava-lhe uma gota de sangue. O sangue pago por ter de escrever aquele nome mais uma vez.

Continua.

terça-feira, 3 de março de 2009

01/01/2000

"Nada mudou. Meia dúzia de idiotas se matou, e nada mudou".

"É pau, é pedra, é o fim do caminho...".  

"A goteira no corredor continua pingando - Um dia ainda morro por causa daquela goteira - e eu continuo desejando que a Elis não tivesse morrido, enquanto a escuto pela... sei lá que vez. Mais uma virada de ano e eu não fui a uma festa de Reveillon. Não preciso de motivo pra encher a cara. "É uma febre terçã". Parece piada, mas não sei o que é terçã. Quem se importa? O dicionário tá longe. Nunca fiz rituais de passagem de ano, e estou aqui, começando um diário em plena virada. Ah que infer-" 

A campainha tocara. Ele se levanta. Seu joelho, problemático desde que ele se lembra, estremece, e se recusa a acompanhá-lo. Os dois lutam. Por fim, o joelho se dá por vencido. A mão direita passa pelo cabelo. A mão esquerda estica a blusa social. As duas levantam a calça. A direita abre a porta. Os lábios se afastam. A língua toca os dentes. O cérebro pensa um falso e belo sorriso. O corpo cuida para que ele seja tão falso quanto a situação pedia: 

- Po... - Havia deixado Elis cantando sozinha. Após se virar correndo e desligar o som, ele volta para a porta para continuar. - Posso ajudar? 

Era Vinícius, o vizinho do lado. Vestia uma patética roupa branca e segurava uma taça de espumante na mão esquerda. "Insuportavelmente simpático"

- Feliz ano novo! - Gritou. Tudo nele cheirava mal.

- É... obrigado. - O seu cumprimento soou muito mais desanimado do que as letras podem exemplificar. Pronunciava cada sílaba mais baixo que a outra. Era o seu modo de dizer "Vá embora". A cena foi seguida por um silêncio gritante que expulsou de vez o vizinho bem-intencionado.

- Então... Vou indo. - Mal terminou a frase e Vinícius não via mais o rosto do vizinho, mas sim os seus próprios olhos no número 305 de metal pendurado na porta. Dois, três, quatro. Cinco passos até a escrivaninha empoeirada. Ele voltava para a companhia de Elis.

"É um resto de toco. É um pouco sozinho"

E ele escrevia, tentando reordenar as embaralhadas impressões.

"Insuportavelmente simpático. Vinícius. Nome do poeta. Parece piada. Ele é uma piad..." 

- Ah! Pro inferno com esse diário. - Não precisava de desculpa para beber. Já havia tomado Dois, três, quatro. Cinco doses. Mas ainda estava lúcido. Ou ao menos era nisso que sua lucidez acreditava. Planos para o feriado? Cinema talvez. Cuidaria disso quando acordasse. Se acordasse. Passos lentos pelo corredor. Dois, três, quatro. Cinco pingos da goteira. Cinco doses que o fizeram esquecer completamente das cinco gotas. Depois da derradeira pisada, ele já sabia o que fazer no feriado. Seu apartamento girava pela sua cabeça. Sua cabeça girava pelo apartamento. Depois disso, nunca mais precisaria brigar com o seu joelho. 

“É uma ave no céu. É uma ave no chão.”

Continua.