- Me atormenta esse misticismo provinciano.
- Por que o dizes?
-Ora, não percebes? Aquele verdureiro que nos abordou agora a pouco, por exemplo. Desejei-lhe sucesso nos negócios e ele me responde com um “Se São José quiser!”
- E qual é o problema?
- Que dessa maneira esse povo nunca irá progredir. Nunca alcançarão o brilho e a prosperidade das capitais. Essa crendice exacerbada só os atrasa.
- Pensei que fosses religioso.
- E o sou! Mas mesmo São José sabe que sem muito esforço não se vai a lugar algum. Estou falando de mais do que pensamento positivo. Falo de intrepidez, firmeza de espírito!
- Mas isso já é característica desse povo. Não tendo esperanças, agarram-se no oculto para continuar sobrevivendo.
- E é justamente essa falta de esperança que me irrita. Pode parecer coisa pouca, mas esse tipo de atitude é quase um atestado de incapacidade!
- Não seja tão severo... – Naquele momento, o rapaz da capital teve as mangas de sua blusa elegante puxadas delicadamente pelas mãos grossas e sujas de um menino. Suas roupas de pano não condiziam com sua situação de pedinte, tendo um requinte, uma feição manual. Os rapazes não perceberam, mas era vigiado por um homem também mal cuidado que se sentava no final da feira com uma garrafa de cachaça na lisa mão direita.
- Ei doutor! Me dá um trocado.
- Veja, provarei o meu ponto. Venha cá rapazinho.
- O que é? Eu não roubei nada!
- Calma. Calma. Não estamos te acusando de nada. Só quero te perguntar algumas coisas. Por que você pede dinheiro? Sua roupa não é de toda ruim. Parece nova, e bem cuidada.
- Meu pai gasta todo o dinheiro que minha mãe ganha na costura com cachaça. Ela disse que eu tenho que ganhar dinheiro senão não tem jantar.
- E por que ela não faz nada? – Perguntou, exaltado, o rapaz que teve a manga puxada, passivo até então. Era filho de mãe desquitada e acreditava fortemente nos direitos femininos.
- Ela já tentou de tudo – A essa altura, o rapazinho já tinha o rosto molhado de lágrimas – “O que eu posso fazer?” ela diz.
- Muitas coisas! Mas essas atrocidades não podem continuar.
- E o que ele disse?
- Disse que esse é o destino que Deus escolheu.
Um grito grave vindo do fim da avenida alertou o garoto, que sem sequer se despedir, correu rua a dentro, sumindo na multidão que povoava a feira. Ainda perplexos, após alguns segundos que mais pareceram décadas, o rapaz repetiu, num tom muito mais piedoso:
- Me atormenta esse misticismo provinciano.